sábado, 15 de março de 2008

A Vera enviou esta bela entrevista do Ferreira Gullar

São Paulo, sábado, 20 de outubro de 2007


Gullar lembra Oiticica e Clark e ataca arte contemPorânea
Em entrevista à Folha, poeta e crítico maranhense de 77 anos relaciona a
arte dos dias de hoje a uma "pretensão descabida" e destaca sua influência
sobre os nomes centrais do neoconcretismo
DO ENVIADO ESPECIAL AO RIO
Leia a seguir trechos da entrevista com Ferreira Gullar, na qual reforça a
importância de seus livros-poema e relembra a cisão que envolveu
concretistas em São Paulo com os neoconcretistas no Rio. (MARIO GIOIA)



FOLHA - O que te motivou a fazer esse livro?
FERREIRA GULLAR - Eu não costumo planejar as coisas, vêm inesperadamente.
Depois que eu adoto a idéia, eu sou sistemático, e aí é outra coisa, mas
eu nunca planejei fazer esse livro. Surgiu do fato de que, escrevendo
eventualmente colaborações daqui e dali, enfim, voltam as questões da arte
concreta e neoconcreta. As pessoas me perguntavam coisas, e coisas que eu
lia e não correspondiam à realidade. Eu que fui o autor do manifesto, o
autor da teoria do não-objeto, modéstia à parte, tive uma participação
decisiva na criação desse movimento, mas chegou um momento em que eu me
afastei.
Então, ele seguiu em frente, e aí tomaram conta dele [risos]. Grande parte
do que fiz não publiquei, como os livros-poema. Idéias que ficaram no
manifesto foram sendo postas de lado e se criou uma teoria e uma
interpretação do movimento que eu acho que não corresponde exatamente à
verdade. Então, eu digo: é necessário botar as coisas nos seus devidos
lugares, até para as pessoas compreenderem que é um movimento importante
da arte brasileira. Há a contribuição da Lygia [Clark], do Hélio
[Oiticica], do Amilcar [de Castro], do Weissmann, enfim, do grupo todo, e
é muito importante.
FOLHA - Você mostra a cisão entre os grupos paulista e carioca na poesia e
nas artes entre os concretos e os neoconcretos?
GULLAR - São coisas diferentes. A arte concreta e a poesia concreta são,
de fato, preponderantemente paulistas. Houve contribuição do grupo do Rio
no começo e, sobretudo, quando se refere à poesia, a gente começou mais ou
menos junto e tal, mas depois houve a ruptura em condição de discordâncias
teóricas, que eram, na verdade, expressão de uma tendência que
preponderava mesmo no grupo de São Paulo. Já preponderava entre os
pintores com o Waldemar Cordeiro.
A gente aqui no Rio achava ele racional demais, muito excludente das
outras complexidades. Depois, com os poetas, quer dizer, com a tese de uma
poesia que era feita segundo um plano piloto, coisas com as quais nós não
concordávamos.
Era muito mais teoria do que prática. A poesia será feita segundo fórmulas
matemáticas... Aí não é possível fazer. Eu considero charlatanismo dizer
uma coisa que não pode ser feita. O movimento neoconcreto não nasceu como
uma resposta ao concretismo de São Paulo. Essa cultura nasceu em meados de
57, o movimento neoconcreto só nasce em 59, quase dois anos depois.
FOLHA - Você considera que o primeiro marco da sua obra é "Luta Corporal",
em 1954? E, na época, qual era a sua relação com poetas de gerações
anteriores, como João Cabral, Drummond, Murilo Mendes, Manuel Bandeira?
GULLAR - Quando eu comecei a fazer poesia em São Luís do Maranhão, tinha
17, 18 anos, nem conhecia esses poetas. Não conhecia ninguém. Eu costumo
dizer que São Luís era Macondo, lá ainda se fazia poesia parnasiana.
Quando eu tomei conhecimento da poesia moderna, foi uma coisa estranha,
surpreendente. Em seguida, eu procurei ler sobre aquilo, entender, aderir
a essa visão nova e de maneira mais radical do que os próprios poetas da
época. E daí "Luta Corporal" ter se tornado mesmo tão exclusivo, que
terminou com a desintegração da linguagem, porque não aceitaria qualquer
princípio a priori para fazer poesia. Qualquer norma agora, nada eu
aceitaria. Esse fato me levou a desintegrar tudo.
Quando eu descobri esses poetas, quer dizer, Drummond, Murilo Mendes, eles
contribuíram para me revelar, evidentemente, uma outra visão do que era a
poesia. Uma poesia mais ligada ao mundo cotidiano, às constâncias atuais,
à realidade material do mundo. Lia todos os dias esses poetas, Bandeira,
Murilo, Drummond, lia, relia. Depois, comecei a descobrir os outros poetas
do mundo, Rilke, foi uma revelação quando eu conheci a poesia dele, aí
depois Rimbaud, Mallarmé.
FOLHA - Você defende a idéia de que a poesia neoconcreta tem uma nova
sintaxe, mas não um novo verso...
GULLAR - Veja bem, o Augusto de Campos e o Haroldo de Campos tinham
publicado um artigo em que eles diziam que se tratava de buscar um novo
verso para a poesia. Aí eu falei para eles: não se trata de um novo verso,
se trata de uma nova sintaxe, porque o verso já era. A sintaxe foi
desintegrada, tem de ser buscada uma nova sintaxe. O que o grupo de São
Paulo fez? Eles criaram, de fato, uma nova sintaxe, que foi a idéia do
poema visual, o poema cuja construção não é a sintática, a sintaxe
vocabular, a sintaxe da língua, mas o que eles dizem: as relações de
proximidade e semelhança entre as palavras. Então, é uma outra forma de
construir o poema. Isso é uma coisa nova, eles que fizeram.
FOLHA - Por que sua poesia partiu para o tridimensional? Seus poemas estão
em exposições de artes...
GULLAR - Pois é, comecei a fazer o livro-poema. Como eu posso construir um
poema que obrigue o leitor a ler palavra por palavra e que no final
resulte em uma estrutura visual? Procurei criar um livro que obrigasse o
leitor a ler palavra por palavra. Esse fato foi decisivo no neoconcreto. O
que distingue a poesia concreta? A participação do espectador na obra de
arte. E nasceu do livro-poema, mas eu não inventei nada.
FOLHA - No livro, você diz que seu poema "Fruta" influenciou a série dos
"Bichos", da Lygia Clark?
GULLAR - O "Fruta" já é um objeto, ele não é mais um livro. A maneira como
ele abre é como se você estivesse assim abrindo uma flor, você tira uma
pétala, abre outra pétala, abre outra e aí no fundo está a palavra "fruta"
[Gullar pega um "Bicho" e mostra as semelhanças do movimento da
escultura]. A Lygia estava desintegrando a pintura e tirando do plano o
elemento tridimensional. Estava fazendo os "Casulos", que inchavam a tela,
que criavam uma terceira dimensão. Ela partiu para criar uma coisa no
espaço, que não é uma escultura, na verdade, é uma coisa que nasce da
pintura.
FOLHA - E você diz que seu "Poema Enterrado" influenciou projetos de Hélio
Oiticica.
GULLAR - Sim. Depois que eu fiz "Fruta", que já era um objeto, eu pensei:
bom, vou fazer objeto a partir de agora. Não vou fazer mais nem livros nem
coisas parecidas com livros. Depois, vamos fazer algo com a participação
corporal. Agora, não é só a mão que vai participar, agora é o corpo
inteiro. E como será? Eu tenho de entrar no poema. Eu imaginei entrar no
poema e aí bolei o "Poema Enterrado", que é uma sala no fundo do chão, em
que o cara desce por uma escada, abre a porta e entra no poema e lá tem os
cubos. Tem lá um cubo vermelho, você levanta, depois tem um cubo verde,
você levanta e depois tem um cubo menor que você pega do chão e lê a
palavra: "rejuvenesça".
Então, eu publiquei o projeto desse "Poema Enterrado" no Suplemento
Literário do "Jornal do Brasil". Aí o Hélio Oiticica leu e me ligou.
Falou: "Cara, achei genial, vamos construir. Meu pai está construindo uma
casa nova aqui na Gávea Pequena e eu vou dizer a ele para a gente
construir o "Poema Enterrado" no quintal". O pai depois se rendeu e
construiu o "Poema Enterrado". Quando nós fomos ver, no dia da inauguração
do poema, tinha chovido na véspera, o poema estava inundado [risos].
O "Poema Enterrado", do final de 59, teve influência sobre o trabalho do
Hélio. Anos depois, os projetos "Cães de Caça", que o Hélio fez, são
labirintos que a pessoa percorre, quer dizer, tem essa participação
corporal, é uma coisa que foi antecipada pelo "Poema Enterrado". Não estou
querendo dizer que eu sou o genial criador da arte neoconcreta. Nós éramos
um grupo e havia uma permuta permanente de idéias.
FOLHA - Você fala no livro que Lygia Clark e Hélio Oiticica enveredaram
por um campo sensorial.
GULLAR - Essas experiências-limite foram desenvolvidas pela arte
neoconcreta e levadas às últimas conseqüências. Quando a própria Lygia,
depois dos "Bichos", começa a fazer experiências com a fita de Moebius no
"Caminhando", começa a cortar coisas e a experiência seria ficar cortando
infinitamente aquelas formas. Ela própria disse que isso não era mais
arte. Depois, ela própria transformou aquilo em terapia, os objetos
relacionais. Quando o Hélio faz, por exemplo, os "Parangolés", ele não
está mais no terreno da experiência formal, de alguma coisa que eu
construo. É uma pessoa qualquer que bota um pano nas costas, tem a ver com
uma porta-bandeira de Carnaval.
FOLHA - Você está desencantado com o atual estado da arte e da crítica?
GULLAR - Sim, claro. Porque não tem sentido o cara fazer um tipo de
suposta arte que não tem artesanato, não tem técnica, não tem princípio,
não tem norma, não tem objetivo nenhum. A gente sabe que não pode ser
ensinada para ninguém. O que eles vão deixar para a outra geração? O quê?
Como se vê mosca em microscópio? É uma pretensão descabida. Até Bach teve
que aprender música para poder compor.
É publicada uma série de bobagens, e a crítica participa disso. Fica aí
escrevendo coisas que não tem pé nem cabeça. O que você vai escrever? O
cara bota larva de mosca... O que a crítica vai dizer? Essas larvas são
boas, são belas larvas? Então, não há crítica para isso. Então, o crítico
está sendo expulso e não percebe. Então ele fica escrevendo bobagens,
sociologias, especulações filosóficas em torno da larva da mosca.

Ah, o que que há?


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